quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Wasteland

Atrás daquela porta, uma porta sem parede que a contornasse, havia um sorriso estranho, permanente e inverossímil. Sorri para a fechada porta. Eu, que tinha muito medo, andei desconfiado e lento. O céu já estava nublado e as nuvens, outrora densas, rapidamente dissipavam-se. O céu era dum laranja óbvio. Alcancei a maçaneta, e não faria sentido girá-la, mas o fiz. Se não fizesse sentido fazer o contrário do que acabei fazendo, teria o feito. O clima naquela sala não mudou com a nova passagem. Não havia paredes, nem teto, só a porta e eu. E havia também um tapete absurdo que eu teria citado antes, não fosse absurdo. No rosto estático, estava o sorriso estático. Uma gota de suor lhe contornava a têmpora direita. Não era um sorriso bonito, mas parecia ser sincero. Então não era para a porta que sorria, talvez para algo armazenado atrás dos olhos. As bochechas não tremiam, a garganta não pulsava. Não havia nada nos olhos. Olhavam para si, para o nada, mas o olhar pouco importava. Até quis dizer algo, mas temi não ser ouvido. Para economizar empenho, resolvi não fazer nada. Fiquei rapidamente entediado. Pus-me a acenar diante dos olhos, num movimento semicircular. Não reagia.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Noites de Jazz - "I Walked Bud", "Blue Monk" e "'Round Midnight"

Eu já ficava irreverente diante do mundo que girava. E eu conseguia ver que girava. Ao meu redor. Eu, o centro de tudo. Terá sido o uísque? O sangue em minhas mãos nem pingava de tão seco. Lembro que gostava daquele cheiro amargo, suave bolor, aquele negócio - não meu - coagulando em minhas mãos. Sentia-me vazio e infinito.
A música dizia “… Oscar played a mean sax/Mr. Byers blew a mean axe/Monk was thumping…” quando eu vi que ela dormia. Na hora do solo de Monk eu preparava uma dose modesta de uísque, com pouco gelo, para que eu pudesse acompanhar a bateria, solando com o copo. Uma vontade de comer veio súbita, assim como partiu. Levei o copo à boca e por um segundo inalei aquele ar frio e seco de dentro do copo, um odor metálico atravessou minhas narinas e penetrou no meu cérebro me fazendo não pensar naquele instante. Bebi num gole só e não pude evitar a contração dos músculos do meu rosto, dos meus ombros e do tórax. Preparei outra dose, firmei o lençol que prendi à cintura e fui até a cozinha achar o que fazer. A música já era outra.
Monk se ocupava com um Monge Azul enquanto um frio glacial subia pela minha espinha, contornava meus braços e fazia meus dedos estremecerem. Larguei o copo no balcão e sentei num banco alto de madeira.
Meus pensamentos ricocheteavam nas paredes do meu crânio e, realmente, foi uma grande noite. Lembrei do japonês que nos serviu o café na estação e de que o uísque estava acabando. Acendi um cigarro e, naquela fumaça densa, vi meus pensamentos amorfos. Vi a incoerência dos acontecimentos. Não pensei por mais um instante e meus pensamentos voltaram a enlouquecer. Ela me pressionava há muito para algo que eu não compreendia. Dei um gole no uísque e traguei o cigarro. Eu já não sentia culpa pelo futuro. Sabia o que devia fazer, bastava-me fazê-lo. Acabei num gole o uísque e peguei uma das facas do faqueiro.
Passei pela sala e na outra mão trouxe a garrafa de uísque. Minhas pernas não estremeciam, nem minha convicção. Entrei no quarto em silêncio e ela de bruços. Era domingo e estava chovendo.
- Amor, preparou algo para comermos? – aquela voz rouca e suave como cotelê velho não me fez mudar de idéia.
- Sim, baby! Eis aqui o desjejum. – larguei a garrafa no pé da cama e pulei em cima dela, tapando-lhe a boca com uma das mãos e prontamente com a outra rocei a faca no pescoço dela, fazendo um suave corte na ida e um colericamente profundo na volta. Seus braços não tiveram tempo de reagir sendo as suas mãos as únicas a terem se manifestado, abrindo e enrijecendo os dedos de forma insana como se por ali fluísse o sangue e como se ali tivesse sido o corte. Larguei sua cabeça e a música já era outra.
Sentei-me aos pés da cama e dei um gole da garrafa de uísque. Meu cigarro na cozinha já devia ter-se apagado no cinzeiro. Coisa que aquela ali não teria feito sem mim.

N.A.: Músicas interpretadas por Thelonious Monk Quartet, exceto In Walked Bud por Thelonious Monk Quartet e Bud Powell.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Past Liliu

Não vejo mais os lírios de antigamente

Não pereciam a qualquer geada

Ou enrubesciam ao roubar da chuva.

 

Não sinto mais o cheiro de anteontem,

O gosto amargo do rio de passadas águas

Meu paraíso desfez-se em passado e trapos,

Não há jangadas que me tirem do horror impuro.

 

Eu quero lírios pra dar-te no novo dia,

Já não se nascem outros como de outrora,

Minha pretensão é crua e malevolente,

Como um desejo imerso no cego orgulho.

 

Contemplas casas e dizes que serão suas,

Eu choro e lembro a casa de antigamente,

Aroma doce, hortênsias e hortelãs;

Que trasanteontem já cria não ser mais minha.

quinta-feira, 26 de março de 2009

???

Quão grande seria meu deleite ao conseguir ser envolvido por qualquer beleza fútil. Eu provavelmente começaria por achar maneiras para me justificar e, quando estivesse realmente convencido de que aquilo é o que é, deitaria minha cabeça no travesseiro e tentaria dormir. Tentaria apagar aflições por ausências com qualquer pensamento político. Teria que começar a ser vaidoso, para evitar a depressão de uma possível rejeição pré-contato. Qualquer forma de obsessão é válida. Preenche. A gente vacila e quase se aproxima. Quando caio na real, chegou o meu ponto. Puxo a corda e desço.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Noites de Jazz - Malditas Bromélias - Fragmento

       À luz daquele poste via as pessoas caminharem desconfiadas pela avenida. Eram poucas e a luz fraca, por isso a incerteza. Meus braços já estavam dormentes, dado o adiantar das horas (passava das duas da madrugada), embora não tivesse sono ou cansaço, sentia meu corpo moído por dentro, minha pele formigava e ficava inseguro diante das pessoas. Afastei-me do poste e da luz e, variando entre calçada e rua, cheguei a algum lugar inteligível, que não tentasse me decifrar nem que precisasse ser decifrado. Sentei-me a uma mesa no canto do bar. A população dali não era nem tão grande para se sentir desconfortável nem pequena demais ao ponto de parecerem íntimos aqueles que estavam. Pude finalmente relaxar. Pedi ao garçom que me trouxesse o cardápio, e assim o fez com certa demora. Perguntei se haveria algo. Respondeu que sim, um jazz-trio estava tocando. Rotulou-me um cara de sorte, devido ao horário. Beberia uma cerveja em outra ocasião, mas o jazz é para mim extremamente diurético, e me permite beber um uísque. Qualquer nacional me satisfaria. Sem gelo, falei.

            Lá fora começara a chover. Perfeito, pensei. Sempre associo o jazz a lugares quase imateriais, praticamente etéreos. A chuva, um néon num ambiente esfumaçado, é quase como se as paredes tivessem sentimentos ao invés de cimento. Desconstruo-me no jazz, apesar de Monk ser o maior arquiteto que já houve. Chegou, finalmente, meu uísque. Momento oportuno, a banda já se preparava para o último ato. Provavelmente tocariam mais duas peças, mas como tudo que nos rodeia, era imprevisível. Esperei. O baixo soou os primeiros acordes. O chimbal começou a chiar. Depois o piano. Senti um perfume diferente quando se deu a entrada do piano. “Estranho”, pensei, “instrumentos com odores”. Nada disso. Uma mão feminina no meu ombro. “Que inconveniente”. O momento demandava o silêncio. Estava enganando a mim mesmo. Inclinei levemente a cabeça e reconheci o rosto na penumbra. Era uma velha conhecida, praticamente crescemos juntos no mesmo bairro. Não seria tão ruim, afinal, alguma companhia. Levantei-me com algum esforço, apoiando-me na cadeira, beijei-lhe a face com a outra mão no seu ombro. Convidei-a para se juntar a mim. Fê-lo.

            De incerto na solidão da noite passei a construir, com certa deselegância, algum plano futuro. Perguntei se beberia, disse que sim. Perguntei o quê e disse que o mesmo que eu. Demandei do garçom outro caubói. Enquanto nossos raciocínios tentavam sincronizar, a banda desferia golpes suaves contra seus instrumentos. Eu queria, contudo, não deixar transparecer qualquer intenção de minha parte para com ela.

            - De onde vem, Ana? – perguntei pra introduzir qualquer colóquio.

            - Sneguer. – secamente me largou o nome do bar que eu detestava.

            Não parecia de certa forma entusiasmada ou, pelo menos, inclinada a qualquer conversação. “Seja”, pensei, fiquei flutuando como ela naquele espaço. Agora, afogado nos meus pensamentos, olhava de canto para ela enquanto recebia com um sorriso tímido, quase imperceptível o uísque. Que bela combinação de traços. Imagino se seria possível idealizar qualquer proporção como esta, mesmo por Michelangelo.

            Acendi um cigarro, pedi licença e levantei. Minhas pernas já não doíam, e qualquer coisa que pudesse estar me incomodando foi subtraída da minha cabeça, lavada pela primeira dose. Deslizei até o banheiro a passos lentos. Já no interior daquele cômodo rústico que parecia um improviso, dei-me por rei do lugar e me tranquei lá dentro. Passei uma água no rosto e pensei, “Pois deve sê-la”, não que eu pudesse escolher tanto minhas companhias. Olhei-me no espelho e estava até apresentável. Quais seriam suas pretensões? Malditas mulheres.