terça-feira, 13 de setembro de 2011

Breve elogio à mentira


Estive meditando nos intervalos dos cafés e decidi que gosto de mentiras; pelo menos parece que as pessoas estão tentando me impressionar.  Há muita gente tediosa por aí e é melhor mesmo que mintam; da minha parte, prefiro viver uma ilusão de quinze minutos que passar o resto do dia pensando como alguém pode suportar a si mesmo sendo tão desinteressante.
Partindo de um ponto de vista mais comercial, firmo ainda mais minha ideia neste posicionamento. As pessoas que conheço (pois só destas posso falar), quando são elas mesmas, o são de graça, sem nenhum fim de vantagem e este tipo de conformismo me incomoda ou, pelo menos, causa comichões no cérebro. Os mentirosos, estes eu admiro, estão à frente, pretendem, rebelam-se contra a realidade; negam o fatual, aumentando consideravelmente suas probabilidades. Qual o mal nisso? Vejo meus amigos e conhecidos, verbalizando seu fetiche pela verdade, mas, eu pergunto: o que há de tão bom nela? Se fosse, a verdade algo imaculado, por que haveria a mentira de existir?
Estarei eu me contradizendo aqui ao dizer sinceramente que gosto da mentira? Não entrarei neste tópico lógico e voltarei às justificativas. Prefiro minhas projeções de mim mesmo à minha presente condição. Apresentar-me como minha projeção futura é como vender uma ação com a promessa de que esta se valorizará. Não é um problema crer numa mentira, basta que ela seja indefectível. Comecei falando de cafés como unidade temporal e, agora, utilizarei esta bebida para finalizar de forma poética este breve excerto axiomático, com o fim de que não digam que não gozo de sentimentos nobres. Uma pobre analogia para arrematar este argumento que já me cansa as mãos: a vida do sujeito é o café fraco com gosto de coador da sua avó (algo irrecusável, mas não por suas qualidades); a mentira é açúcar para a vida e café fraco se carrega de açúcar para que fique tragável. Depois do segundo gole já se idealiza um café decente e, para fins de satisfação, é este café que se está tomando.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Máscara

As pedras da calçada são postas alinhadas
para esconder desvios evidentes;
para evitar pausas (sóbrias frases não ditas no caminho)
adiadas até o canto do próximo passarinho.

E as construções que engolem as estrelas -
assim como o progresso, as luzes, os redemoinhos de crédito -
inclinam-se convictas sobre as cabeças baixas,
que procuram na noite, na calçada e nos próprios bolsos
um vórtice que as engula e não pergunte quanto.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Morte Romântica #1


As estrelas me atravessavam como se eu fosse nada. Ou, posso dizer, eu as atravessava. Aquilo que vivi já venho esquecendo. Meu corpo se desmaterializou e nem lembro como era antes. É um silêncio incompreensível aqui. Não há colisões nem eclipses. Eu vejo tudo como se eu fosse só meus olhos estáticos numa caveira sem músculos. Não tenho mais aptidões nem reflexos. Não lembro de ter testemunhado o colapso do meu corpo. As sutilezas da existência não mais me afogam.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Poema complementar. Como traçar um andróide!

Andróides copulam; tentam multiplicar a apatia humana.
Servem-se dos restos de existência jogados sobre os relógios acelerados.
Põem-se inertes na presença da senhoria, indivíduos autômatos, sentimentos sintéticos.
Copulam nos intervalos, nas audiências de grandes processos.
Os ventiladores afagam suas ombreiras;
milhares de trodos: burocracias do amor.
A matemática do prazer carnal, do prazer despido, da súbita mudança de endereço.
Uma nova parceria. Um fluido sabor metano.

Para ler dormindo.

    Estão todos certos; estão todos errados. Sonos profundos, concomitantes roncares sinceros.Cada percepção, após o despertar, a maior expressão da verdade. No entanto, carregam o peso dos seus anos e dos milênios alheios; os bolsos são pequenos para as mãos inquietas e não há papel no mundo que baste para transcrever seus pensamentos, porque quem vela o sono de um, vela o sono de todos.
    Hoje, quando retirarem-se magoados de seus galpões ensopados de lembranças pesadas, desfalecerão à alvorada calma e vil que virá os cegar. Verão, pois, o ontem denovo, e, sem saber, verão também o amanhã. Estarão amaldiçoados por seus companheiros eternos: passado e especulações. Presos no eterno tubo helicoidal do tempo que povoam sem saber porquê. Em cada canto estarão condenados a ver a si mesmos, e em cada novidade, o óbvio.

domingo, 12 de junho de 2011

Setenta e três

nós que não sabemos os dias dos santos,
os feriados nacionais e os hinos da comunidade;
somos as crianças a titubear no mundo.
estamos podres de momentos felizes.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Abandonei a métrica (adeus querida amiga)

O Bolero de Ravel é a melhor música para se ouvir
deitado em um tapete, olhando pro teto.
Aqui na cidade uns só precisam de um tapete
e outros de um teto.
Logo ali, no canto, quem já os possui,
só precisa aprender a usar um tapete e um teto.
E arranjar um bom toca-fitas.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Tédio matinal segunda-feira (04-04-11)

As pessoas se arrastando no passeio deixam, ao observador, subentendida sua insatisfação com o destino do arrasto, sua casa ou trabalho; porque se arrastam na ida, no início da manhã, e na volta, no final da tarde. Eu costuro entre elas e vejo seus rostos de tédio, e é um tédio contra todos, que bloqueia o mundo com seus punhos sonolentos. Elas poderiam estar contemplando o mundo, você diria, mas caminham num estado de neutralidade e impermeabilidade que isto nem poderia ser cogitado. Há aqueles que caminham sem rumo e estes também estão entediados; poderiam se dar ao luxo da autocontemplação ou da exocontemplação, mas não o fazem. É possível que este estado de espírito seja um fenômeno de tráfego - no ir e vir não se tem tempo para pensar e há descordenação em caminhar e esboçar satisfação com algo ao mesmo tempo -, assim como é possível que não.

sábado, 14 de maio de 2011

DDA, confusão e outros espirros reflexivos.

Tentar explicar qualquer coisa até o fundo da sua essência requer um amplo conhecimento sobre muitas coisas. De outra forma não seria possível fazer comparações equivocadas e se confortar com uma resposta razoável no fim de uma noite sorumbática. Procurar a certeza nas coisas etéreas é submergir no paradoxo de existir de forma direcionada; a cada dia o indivíduo acorda um. O indivíduo 'k' acorda um a cada dia, pelo menos. Hoje ele poderia dizer que te ama para sempre e ser sincero, mesmo que amanhã viesse a te abandonar, na sexta-feira amasse outra e sábado voltasse a te amar perpetuamente até a próxima segunda-feira. Não quero ser pontual nesta questão de tentar explicar o que é, numa percepção pessoal, tentar explicar alguma coisa até a sua essência. Falar de amor é muito complexo - e os indivíduos sempre acham que sabem tudo sobre o amor, ou que eles não têm sorte no amor, ou que estão completamente resolvidos, mas a esta questão eu gostaria de voltar mais adiante, ou nunca mais, para que não se crie uma expectativa de que eu vá descrever aqui minha percepção unicamente sobre os relacionamentos, ou os não relacionamentos que levam ao amor.

Ser genérico é tudo que eu quero agora. Gostaria de poder subtrair a especialidade necessária para se entender as coisas e criar uma só ciência que explicasse o mundo, as relações e o barulho que o meu ventilador faz e porque ele não funciona direito; mas no momento histórico, isso é improvável. O primeiro passo para qualquer ciência, acredito, é a curiosidade. Mas a curiosidade matou o gato e provavelmente me mataria com uma descarga elétrica, ou o desencarnar de um adormecido demônio que reside nos ventiladores, caso eu enfiasse uma chave de fenda no meu ventilador ainda ligado. O que eu quero dizer é que não basta apenas querer saber sobre algo, mesmo que você queira com muita força, porque uma verdade não vai se revelar em um musical de quatro atos com intervalo para café. É preciso garimpar principalmente nas periferias, pois, a essência é, por via de regra (não que exista uma), ininteligível e são as camadas superficiais que nos ensinam mais amplamente e genericamente sobre as coisas, de modo que possamos entender posteriormente uma coisa específica e explicá-la até sua essência, mesmo que não a conheçamos essencialmente. Entender o miolo das coisas levaria o indivíduo 'k' a uma especialidade desnecessária, a descrer em tudo que fosse externo a sua especialidade. O que eu quero dizer é que não existe um clímax determinante em toda existência; o cara não vai simplesmente abdicar de toda uma generalidade de conclusões porque de uma hora para outra ele teve uma visão e resolveu se tornar um especialista e negligenciar todo o universo. É admirável, numa análise moral, que pessoas sacrifiquem suas existências para que haja especialistas no mundo.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Domingo de madrugada (percepções desconexas sobre assuntos diversos)

A massa tirânica, pensamentos estilhaçados, segue silenciosa - olhares de reprovação.
Há solidão no excesso de liberdade, e padrões no amanhecer.
As tosses são afinadas e dispersam no ar poluído, aceitável e erudito do homem comum.
Existe manhã nos olhos institucionais dos burocratas.
As domésticas deslizam nos anteontes dos quais não participaram,
gozam de uma felicidade que lhes ergue o nariz.
São virtuais no espaço que ocupam, na percepção que lhes permite o sábado.
São crepúsculos outonais nos edredons alheios.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Rats

No teto infecundo ratos embriagados gritam em esparsos raios de luz.
Giram, decepcionados, nos estalos do relógio, miríades de sonhos.
Os roedores desprezam o veneno em busca do supremo absurdo,
colidem uns nos outros nos intervalos escuros do sótão abandonado.
Despedem-se do sol dentro dos escafandros e mergulham na poeira adormecida.
Apagam as lições de vida do patriarca e o que resta é o desespero cor-de-rosa.
Pobres aqueles que ingeriram a verdade.

Vórtice

Estou livre até o pescoço;
acima, sou aparato de vingança alheia.
As colheres tilintam agonizantes na cozinha,
"alimentaremos bocas para que?", dizem elas.
Cegos caminham convictos e estamos azul-acinzentados previamente,
por esta liberdade toráxica e tediosa.
O cérebro sufocado num enxame de ideias descartadas e vagantes.
Numa outra realidade eu seria um leito vago;
um objeto horizontal esperando uma razão de ser
(não mais do que sou hoje).
As pombas sorriem nos umbrais mal pintados e memorizam o perímetro.

Louros

Uma inspirada profunda
e os olhos se fecham no incessante ruído da urbe,
não mais me cega o sol outonal e vem,
tímido, em gotículas, o vento me refrescar os braços.
Aos olhos se decompõem a rua e os semáforos;
e um sinal aberto é sempre um bom sinal.
Seguem, matinais, as pernas cobertas de jeans,
alternando-se convictas e tensas.
A brisa não causa comoção
e quase não há brisa onde esta ainda comove.
É natural aprazer-me as coisas naturais
e delas subtrair a verdadeira existência;
mas como decantar o mundo ou pô-lo em repouso?
ou livrar-me do paradoxo de que tudo é natural e nada é natural?
Eu sou você, na mesma proporção que você é você.
Vivo neste planeta e mereço tudo que dele advém;
não merecesse, por que haveria de, em todo ele, viver?

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Monstro

Seu cérebro contém mil vontades e desejos irrealizáveis;
pela traquéia saem mil contradições humanas, todas aceitas e reprimidas.
No estômago guarda a miséria dos crentes e a saciedade dos clérigos.
Mil pragas açoitaram a pele e mil brisas lhe vieram refrescar da ardência.
Nos braços: fábricas, forjas, arados
repetindo os mesmos movimento e obra, denominando-os diversamente.
Seus pés feitos de carruagens, foguetes, carros e cavalos
rumando, sem cessar, para a incerteza.
Nos olhos amontoam-se as cameras, os televisores e a poesia,
que apontam para todos os lados,
distraídos e hedônicos, estão obcecados pela trajetória.

terça-feira, 5 de abril de 2011

The Cake is a Lie

Enfiar-me num claustro monástico
e resolver todos os meus problemas.
Os religiosos não são seres universais;
são camundongos trafegando num labirinto
and the cake is a lie.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

02/02/11

Porque os dias já nasciam todos iguais há algum tempo, ela se deitou mais uma vez como sempre se deitava àquele horário naquele dia. Era uma tarde smooth jazz com pessoas smooth jazz, todas lá fora. Havia cansaço nos seus lábios proeminentes que não formavam palavra. Havia resolução na disposição dos móveis do quarto, mas aquilo era uma forma de maquiar seus sentimentos sempre fervilhantes. O impulso que a fez se jogar sobre os lençóis e acolchoados cuidadosamente escolhidos, não foi o que a fez decorar o quarto. Ela tinha percepção. Sabia que atuava e o quanto. Eram sete e dezesseis do horário de verão infernal. Das têmporas de todas as pessoas do universo parecia estar escorrendo suor e desânimo.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Crepúsculo em 17 de março

Desfaço as malas no presente absurdo e agonizante,
Pensamentos poluem inocentes papéis arranjados simetricamente.
O pânico comunitário ocupa na próxima esquina o lugar das mulheres impacientes em seus sapatos determinantes.
Na paisagem trêmula vê-se meninos arrogantes ostentando seus devices.
A tecnologia obscena exibe os seios para o futuro imberbe.
Num aquário, as juízas do invisível gozam perpétuas verdades.
Itinerários são traçados sobre o arcabouço autocontemplativo sem que este se ilumine.
Lobos aglomeram-se nos bares implorando por saúde e desfazem seu rosto suado num colérico sorriso.

Num período fronteiriço onde há paz social e intranquilidade,
onde a esquizofrenia urbana se une ao otimismo dos ébrios:
as pessoas de acetato subordinam-se ao cansaço e projetam seu mau-humor no ir e vir das suas contradições.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Japas

Quero deitar no auge dos anos oitenta e olhar para você numa crise de antropofobia:
Onde colônias humanas se retraem nas segundas-feiras estéreis;
Onde japas sanguessugas destroem os condomínios de culturas obsoletas;
Onde os sábados são nauseabundos e os suicídios controlados;
Onde é imoral discutir em sobriedade sobre a frustração da existência.

Os mágicos congelam a audiência em estado de êxtase.
As pombas trafegam sob os automóveis emocionalmente envolvidos.
Janelas escondem o que é abstrato na rua e os amantes se jogam dos meios-fios dentro dos sinais vermelhos.

Reféns do mainstream deleitam-se na comodidade das poltronas razoavelmente confortáveis em seus apartamentos ainda não entregues,
Sorriem para suas etiquetas bordadas numa senzala asiática infestada de fumaça de incenso e cigarros baratos,
Percebem sua disfunção sináptica e culpam todos os governos do mundo,
Despem-se nos corredores das franquias estrangeiras e exibem-se nas vitrines domésticas com seus pertences restaurados.


sábado, 26 de fevereiro de 2011

La Bureaucratie

Atravesso as portas giratórias ouvindo absurdos genéricos sobre a existência.
Os guardas armados se distraem com as morenaças e eu posso tomar de assalto toda a frustração do mundo.
As asperezas vagueiam nos elevadores de impaciência,
Divisórias permanecem tranquilas discutindo Camus enquanto burocratas eunucos trafegam e tramitam suas preces.
Há mulheres deslizando em suas advertências e homens de aparência apressada e, paradoxalmente, autocrática.
Nada compõe mais absurdamente o ambiente que as secretárias arrogantes sentadas sobre as graduações alheias e observando seus impérios com desprezo.
Ad infinitum os telefones tocam imbecis, planilhas compreendem a mácula da raça humana e os supervisores subtraem das prateleiras sujas o último remédio para o tédio eterno de existir.

Os setores se empurram uns aos outros dos precipícios tardios.
Colinas se abrem no horizonte através do vidro pelo qual imaginam arremessar-se os infelizes duendes do funcionalismo.
Os leitos estão vazios pois ninguém se dá ao trabalho de realmente adoecer.
As semanas sangram nos meio-fios escorregadios e o Deus-Sol é ovacionado ao beber seu sangue.
Não há contradição na apatia.
Flatline. Flatline. Flatline.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Visão de Fevereiro I

Os telefones injetam carícias
e os nefelibatas matutos adoram seus próprios deuses enquanto despedem-se do ócio matinal adquirido.
As mulheres atraentes em vestidos florais degustam seus caros vinhos em copos de isopor.
Colunas se erguem nas catedrais de tédio pregadas ao tempo por burocratas felizes;
as semanas correm pelo quarto escuro.

Não há dilema nem predileção nas encruzilhadas, nem canção onde o domingo encruzilha.
As velhas tecem suas sentenças sob o caramanchão
Não há brisa no universo que as humilhe e as corrompa a carne
As agulhas especulam sobre o tecido morto do que não está por vir.
Os olhos brilham nos anteontens para metais escassos e lapidáveis.

Assassinos meritocratas encaram os transeuntes com desprezo, sendo nenhum deles digno de ser morto.
Os jornais vertem inocência e preguiça.
Não há sofrimento nas paredes dos supermercados.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A Antessala

               Atrizes pululam na antessala, gritam histéricas por tons pastéis e de vermelho. As crianças riem do velho manco que boicota seu andar prolongando sua existência. Os rostos são todos parecidos. Os olhos todos brilham de ódio e ironia. O quarto esfacela-se em meio aos anteontens. Os comerciantes apressados dispensam suas secretárias. Mulheres desempregadas vagueiam o olhar sobre os edifícios de jade. Não há discórdia nas testas dos homens. Não deveria haver discórdia em suas roupas extravagantes. As pupilas dilatam-se e se retraem; mais uma nuvem. Não há teto na antessala. Há atrizes histéricas brigando por um alfajor rejeitado. Um cortejo de viúvas desnudas e jóqueis aposentados bradam orações ao deus sol. Os seios caídos e as atrizes na antessala. Eu mesmo amo uma delas, mas não consigo distingui-las. São todas atrizes e estão todas choramingando em epopeias magníficas seus olhares distantes de Helena. Todas, agora, em seus teares delicados. Com suas mãos delicadas e suas dicções perfeitas, cantando contradições aos David Bowies que trafegam dentro de seus trajes cor-de-rosa. Segmentam seus pensamentos em antes e fracasso, diluem as decepções em frascos semivazios; negam a própria cicatriz e abraçam Schopenhauer como se abraçassem um cão que as velasse à noite enquanto perambulam entre as camas de conhecidos fedendo a cigarro e desconhecidos com hálito de menta, e preambulam todos seus afazeres. As crianças esquecem o velho manco e se atêm assustadas ao navio que aporta e despede-se de casa. Abrem-se as portas. A rotunda está livre. Camarões esperando para deleitar figurinos desconhecidos. Velhas famélicas circundam os indefesos canapés. Há fogo na antessala, mas estão todos em segurança. A rotunda retém os passageiros. Um a um eles se decompõem sob o deus sol. Aves migratórias esperam a coluna de fumaça do fogo que é mansamente controlado; nem um busto se lhe erguerá. Havia fogo na antessala, mas ele já foi esquecido com a antessala. O caos ressoa fora dos pavimentos. Os comerciantes postulam. As atrizes acatam. As crianças regozijam-se com qualquer coisa. Os camarões pereceram.
            Uma das atrizes ergue sua taça engordurada. Um brinde. Não consigo ver direito do quarto. É o que parece. Tece frases sorridentes, com olhos intermitentemente fechados. Não as ouço, mas riem. Os comerciantes estão indefesos, mais despidos que as viúvas. Entram os clérigos, antecedendo o deus sol, que os persegue serenamente. Não há cicatrizes no seu rosto coberto por elaborada máscara. Não devem haver. As crianças formam triângulos em grupos de nove. As mulheres desempregadas continuam desempregadas; seus olhares, porém, vagueiam sobre outros edifícios. Orgânicas criaturas, todas elas sutilmente distribuídas na varanda das estruturas de concreto, assistem do outro lado da rua a cerimônia introduzida na antessala. O deus sol pede um filé de peixe grelhado e uma coca-cola. Seus dedos do pé tamborilam em seus chinelos elaborados. Não há distração nos olhos que restam descrever. Pousam todos sobre a carniça carcomida que descansa no parapeito. A janela está impecavelmente limpa e, por isso, o espetáculo é prazeroso.          Não há senso de realidade na antessala. As crianças escrevem no pó químico obscenidades sobre governos estrangeiros. Os jóqueis aposentados rolam nas cinzas dos pilares. Não se dizem disparates como os ditos na antessala. Na rotunda, só pensamentos coagulados. Não há arrependimentos, não há movimento fora o levantar e abaixar de copos, o inclinar e desinclinar de garrafas, o inclinar e desinclinar de cabeças, o assentir e o recolher-se para a antessala.
           
           Ouso me retirar. A rua é o pálido calabouço das mentes inseguras, presas numa projeção inverossímil de sucessos contínuos seja qual for o negócio. As pombas se revezam por atenção nos umbrais mal conservados dos prédios de outros séculos; séculos de glórias esquecidas ou cristalizadas em feriados castradores de novos eventos. Há tanta glória no passado das ruas que não sobra um dia para que uma nova glória aflore. A promoção, o beijo, o assalto bem sucedido. Eventos todos dignos de feriado. Não para os sabichões que compõem as mesas da antessala. Os coquetéis são gloriosos, os garçons competentes, a sola do sapato do rei sol é saborosa e macia. “Vejam, ele pisou na minha cara!”, “Oh! Mas que honraria”.
            Prefiro o vento gelado da rua agredindo meus conceitos sobre o inverno e o verão. É difícil correr entre tantas portas e escolher uma que seduza a cruzá-la. É preciso um motivo. Um motivo feliz ou enfadonho que venha a se transformar no futuro num ato da pior vilania que olvide as glórias do passado e se presencie o advento de um novo feriado. Não digo as padarias e os mercados, os açougues e despachantes. As outras portas que se abrem por segundos, por uma miríade de motivos, as que se fecham pela última vez padecendo ao ostracismo programado, à benéfica bolha exponencial de progresso irresponsável. Mortas as lembranças de mais um imóvel inocente. Só restam as folhas do cinamomo para contar a saga de um velho edifício que, mais que os melhores patriarcas, manteve unido o caos e o desespero.
            Sob o céu preto e salpicado de açúcar cristal, na madrugada gelada que não pergunta se eu aceito um café, o tempo para apesar do relógio de corda do corredor de carpet. E é possível ouvir o eco dos sonhos de anteontem perfurando as camadas superficiais da força de vontade e penetrando numa época que não os pertence.
            Segue o cortejo do novo deus pela avenida iluminada por mercúrio aquecido. Os sábados são irresponsáveis, os motoristas dormem sobre as buzinas. Estão todos entediados. “Não queremos novidades”, “É, pintem o antigo de uma cor diferente e nos o devolva.” As invenções natimortas chovem pelas janelas em murmúrios de frustração magnífica e genial. Ainda não é tempo de precisarmos disso. Ainda não queremos precisar disso. Ainda podemos achar novidades nas gloriosas caixas de geladeira-naves espaciais. Ideias coagulam e esperam o momento de jorrar obsolênscias nas residências e balcões. O amanhã já foi inventado. Não há novidade nas ruas. Não há novas glórias e, portanto, novos feriados. Um viva aos patriarcas mortos! Um viva aos velhos ditadores e novos heróis!