terça-feira, 30 de novembro de 2010

79 - Au

As pepitas de ouro misturadas com metais menos atraentes, transformadas em pulseiras bem acabadas, irradiam o sol e as luzes exageradas para olhares seletivos que as procuram como suínos ansiosos por ração de milho; atrás das vitrines excessivamente polidas que não refletem o próprio espectador, descansam em prateleiras carregadas de adornos indutivos e filosofias de vida como um fast food existencial. Atenuam a algazarra humana, convidando adeptos do brilho incessante a silenciar-se diante do velho amor táctil e redundantemente platônico, a fazer salivar seus bolsos e a regozijar-se no prazer eterno de guardar os résumés sentimentais em prateleiras atulhadas com ex-sonhos e roupas que não serviram depois do exagero no foie gras (noutra terça-feira, insignificante como esta, porém úmida, passada sob a sombra de um carvalho que foi transferido de uma reserva federal para o pacífico jardim reservado onde poderia competir com alucinações olfativas causadas pelo exagero de vinho e meticulosas especulações sobre quem realmente teve culpa pelo corte irregular da grama perto do muro leste). Os detalhes foram traçados por um ourives miserável e arrogante, cujas mãos temem a ausência do talhar diário, do construir salva-vidas, do fabricar significados; ninguém se lembrará dele.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Heteronomia (um brevíssimo esboço do que pode vir a ser)

Heteronomia só é vício do outro lado da rua. Na calçada vitrine. Do lado de cá não é vício, tampouco virtude; é imperceptível. Também não chega a ser imperceptível no sentido que não possamos perceber, mas que não queremos vir a perceber. O indivíduo crê, estupidamente, na sua autodeterminação; crê que além de ser a própria bússola é, também, a própria jangada e correnteza. Isso é uma falácia de pessoas previamene untadas com vontades implantadas e desejos coletivos. Não creio que seja uma falha de caráter assentir inertemente ou ajoelhar-se diante do cetro da realeza (seja o que for a realeza); mas percebo que é a mais poética virtude o deslocar-se ao ermo da autodeterminação plena.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Poemeto

Eu era uma sensação adquirida.
Várias sensações adquiridas.
Sensações, no ocaso, já parcialmente dissolvidas no sangue.
Transmutadas em seus efeitos colaterais,
que eram brandos.
Havia luz lá fora
E as pessoas, em algum lugar da calçada, já reclamavam na entonação típica dos dias de semana. 
Suas cabeças submersas em idiotia perpétua,
mastigando decisões ruins de seus passados.
Eu nem ousava reclamar,
para evitar que meu próprio hálito compusesse o ar já carregado do ambiente
e, além do mais, eu era só uma sensação adquirida.
Foi forçoso levantar.
Meus olhos no espelho refletiam o que fora outrora um sorriso desesperado e constante;
relevei.
Meu cérebro latejava.
Minhas ideias retorciam-se num pandemônio típico dos dias seguintes.

Arrependi-me das súplicas de amor revestidas de tédio da véspera.
Meu espírito latejava e a cafeteira sabotava o silêncio aparente;
as janelas estavam fechadas
mas um ruído abafado ainda transcendia a superfície.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Percepção desconexa com recheio de alegorias desnecessárias.

O beijo prefacial é algo inconsequente. Não quero estabelecer que se deva deliberar profundamente um primeiro beijo; é corriqueiro que pelo menos um, após longa ou leviana reflexão, venha com a motivação adequada. Delibera-se no movimento sutil, na percepção do movimento alheio; mas é uma deliberação cega, sem propósito filosófico. Aquele que beija – futura vítima da paranóia e outras catástrofes existenciais - submete-se ao jugo da sorte. Alea jacta est!

Pode ser simples troca de fluido, mas não o é quando é mais que isso. Transforma o impulso hedonista em necessidade vital (não que não o seja). A razão se encolhe no canto do claustro, tremendo e temendo a obsessão que a encara com violência, a esquizofrenia que ricocheteia nas paredes e um palhaço devidamente trajado e triste que exibe-se com arrogância do lado de lá do espelho. Mas pode ser uma simples troca de fluidos. Um salto do precipício com uma corda presa aos pés. E daí é um outro horror mais confortável, porque a razão olha para os lados e coça a cabeça enquanto seus três companheiros habitam um cômodo desconhecido. O fracasso parcial. O que se teme é fruto do mesmo objeto que emana o que se procura. 

"Pobres amantes graciosamente traumatizados e insones, proíbo-vos graça, pois sois miseráveis incompletos. Senti a brisa que antecede a tempestade e vos resigneis. A verdade não está lá fora.”, esbravejou o palhaço do outro lado do espelho.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Havia no céu algumas nuvens, cinza nas extremidades. O mar chacoalhava levemente e uma brisa salgada roçava minhas orelhas. Na minha nuca ela encostou sua cabeça e logo tirou. Nossas costas estavam coladas e dava pra sentir sua respiração. Não sei se olhava o mar ou se estava de olhos fechados. Eu estava de olhos fechados, tenho certeza. Na minha frente só havia carros e construções. Meus ouvidos filtraram todos os sons e eu só ouvia o mar. Minhas costas dançavam com a respiração profunda. Tinha uma perna retraída e a outra procurava conforto na ondulação da areia. No final do meu braço esquerdo estava a mão dela e no final do seu braço direito estava a minha. Havia muito pouco pra se dizer. Na brisa senti um sorriso satisfeito que não poderia estar mentindo. Eu sorri.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Praia

-Eu queria poder retribuir. – disse, e tirou os lábios insensíveis de perto daquela orelha, onde o sol batia, parcialmente impedido pelo poste que estava na tangente da rua. Ela baixou os olhos com certa razão. Se é que há razão em algo. Enquanto ela procurava algo para prender o olhar, correndo os olhos rapidamente pelo painel, desatou o cinto e ouviu-se o barulho staccato da porta abrindo. Não disse mais nada e saiu.


Qualquer forma de amor é insensata e, tudo aquilo que se acha de mais puro sentimento, provavelmente não é amor. Dar nome às coisas, sintetizá-las e universalizá-las no senso comum não as abrange o sentido. A vaidade de saber tudo acaba por insensibilizar qualquer percepção e vivência.

Couto girou a chave e se separou do mundo. Passou a mão pelo cabelo enquanto cobria com outros pensamentos aqueles que queria evitar.

Visão de explicação (já) esquecida

Aproveita enquanto o dia amanhece, não tem solução
Aflitos, seguramos respostas pré-fabricadas
Nossos lábios cerrados sob o céu laranja
Estamos todos aí, estamos sendo extintos pelas declarações.

Queixa #1

Arrependo-me de tudo,
Porque meu primeiro passo foi em falso
E eu sou minha própria conseqüência inerte.