quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Noites de Jazz - Malditas Bromélias - Fragmento

       À luz daquele poste via as pessoas caminharem desconfiadas pela avenida. Eram poucas e a luz fraca, por isso a incerteza. Meus braços já estavam dormentes, dado o adiantar das horas (passava das duas da madrugada), embora não tivesse sono ou cansaço, sentia meu corpo moído por dentro, minha pele formigava e ficava inseguro diante das pessoas. Afastei-me do poste e da luz e, variando entre calçada e rua, cheguei a algum lugar inteligível, que não tentasse me decifrar nem que precisasse ser decifrado. Sentei-me a uma mesa no canto do bar. A população dali não era nem tão grande para se sentir desconfortável nem pequena demais ao ponto de parecerem íntimos aqueles que estavam. Pude finalmente relaxar. Pedi ao garçom que me trouxesse o cardápio, e assim o fez com certa demora. Perguntei se haveria algo. Respondeu que sim, um jazz-trio estava tocando. Rotulou-me um cara de sorte, devido ao horário. Beberia uma cerveja em outra ocasião, mas o jazz é para mim extremamente diurético, e me permite beber um uísque. Qualquer nacional me satisfaria. Sem gelo, falei.

            Lá fora começara a chover. Perfeito, pensei. Sempre associo o jazz a lugares quase imateriais, praticamente etéreos. A chuva, um néon num ambiente esfumaçado, é quase como se as paredes tivessem sentimentos ao invés de cimento. Desconstruo-me no jazz, apesar de Monk ser o maior arquiteto que já houve. Chegou, finalmente, meu uísque. Momento oportuno, a banda já se preparava para o último ato. Provavelmente tocariam mais duas peças, mas como tudo que nos rodeia, era imprevisível. Esperei. O baixo soou os primeiros acordes. O chimbal começou a chiar. Depois o piano. Senti um perfume diferente quando se deu a entrada do piano. “Estranho”, pensei, “instrumentos com odores”. Nada disso. Uma mão feminina no meu ombro. “Que inconveniente”. O momento demandava o silêncio. Estava enganando a mim mesmo. Inclinei levemente a cabeça e reconheci o rosto na penumbra. Era uma velha conhecida, praticamente crescemos juntos no mesmo bairro. Não seria tão ruim, afinal, alguma companhia. Levantei-me com algum esforço, apoiando-me na cadeira, beijei-lhe a face com a outra mão no seu ombro. Convidei-a para se juntar a mim. Fê-lo.

            De incerto na solidão da noite passei a construir, com certa deselegância, algum plano futuro. Perguntei se beberia, disse que sim. Perguntei o quê e disse que o mesmo que eu. Demandei do garçom outro caubói. Enquanto nossos raciocínios tentavam sincronizar, a banda desferia golpes suaves contra seus instrumentos. Eu queria, contudo, não deixar transparecer qualquer intenção de minha parte para com ela.

            - De onde vem, Ana? – perguntei pra introduzir qualquer colóquio.

            - Sneguer. – secamente me largou o nome do bar que eu detestava.

            Não parecia de certa forma entusiasmada ou, pelo menos, inclinada a qualquer conversação. “Seja”, pensei, fiquei flutuando como ela naquele espaço. Agora, afogado nos meus pensamentos, olhava de canto para ela enquanto recebia com um sorriso tímido, quase imperceptível o uísque. Que bela combinação de traços. Imagino se seria possível idealizar qualquer proporção como esta, mesmo por Michelangelo.

            Acendi um cigarro, pedi licença e levantei. Minhas pernas já não doíam, e qualquer coisa que pudesse estar me incomodando foi subtraída da minha cabeça, lavada pela primeira dose. Deslizei até o banheiro a passos lentos. Já no interior daquele cômodo rústico que parecia um improviso, dei-me por rei do lugar e me tranquei lá dentro. Passei uma água no rosto e pensei, “Pois deve sê-la”, não que eu pudesse escolher tanto minhas companhias. Olhei-me no espelho e estava até apresentável. Quais seriam suas pretensões? Malditas mulheres.