terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A Antessala

               Atrizes pululam na antessala, gritam histéricas por tons pastéis e de vermelho. As crianças riem do velho manco que boicota seu andar prolongando sua existência. Os rostos são todos parecidos. Os olhos todos brilham de ódio e ironia. O quarto esfacela-se em meio aos anteontens. Os comerciantes apressados dispensam suas secretárias. Mulheres desempregadas vagueiam o olhar sobre os edifícios de jade. Não há discórdia nas testas dos homens. Não deveria haver discórdia em suas roupas extravagantes. As pupilas dilatam-se e se retraem; mais uma nuvem. Não há teto na antessala. Há atrizes histéricas brigando por um alfajor rejeitado. Um cortejo de viúvas desnudas e jóqueis aposentados bradam orações ao deus sol. Os seios caídos e as atrizes na antessala. Eu mesmo amo uma delas, mas não consigo distingui-las. São todas atrizes e estão todas choramingando em epopeias magníficas seus olhares distantes de Helena. Todas, agora, em seus teares delicados. Com suas mãos delicadas e suas dicções perfeitas, cantando contradições aos David Bowies que trafegam dentro de seus trajes cor-de-rosa. Segmentam seus pensamentos em antes e fracasso, diluem as decepções em frascos semivazios; negam a própria cicatriz e abraçam Schopenhauer como se abraçassem um cão que as velasse à noite enquanto perambulam entre as camas de conhecidos fedendo a cigarro e desconhecidos com hálito de menta, e preambulam todos seus afazeres. As crianças esquecem o velho manco e se atêm assustadas ao navio que aporta e despede-se de casa. Abrem-se as portas. A rotunda está livre. Camarões esperando para deleitar figurinos desconhecidos. Velhas famélicas circundam os indefesos canapés. Há fogo na antessala, mas estão todos em segurança. A rotunda retém os passageiros. Um a um eles se decompõem sob o deus sol. Aves migratórias esperam a coluna de fumaça do fogo que é mansamente controlado; nem um busto se lhe erguerá. Havia fogo na antessala, mas ele já foi esquecido com a antessala. O caos ressoa fora dos pavimentos. Os comerciantes postulam. As atrizes acatam. As crianças regozijam-se com qualquer coisa. Os camarões pereceram.
            Uma das atrizes ergue sua taça engordurada. Um brinde. Não consigo ver direito do quarto. É o que parece. Tece frases sorridentes, com olhos intermitentemente fechados. Não as ouço, mas riem. Os comerciantes estão indefesos, mais despidos que as viúvas. Entram os clérigos, antecedendo o deus sol, que os persegue serenamente. Não há cicatrizes no seu rosto coberto por elaborada máscara. Não devem haver. As crianças formam triângulos em grupos de nove. As mulheres desempregadas continuam desempregadas; seus olhares, porém, vagueiam sobre outros edifícios. Orgânicas criaturas, todas elas sutilmente distribuídas na varanda das estruturas de concreto, assistem do outro lado da rua a cerimônia introduzida na antessala. O deus sol pede um filé de peixe grelhado e uma coca-cola. Seus dedos do pé tamborilam em seus chinelos elaborados. Não há distração nos olhos que restam descrever. Pousam todos sobre a carniça carcomida que descansa no parapeito. A janela está impecavelmente limpa e, por isso, o espetáculo é prazeroso.          Não há senso de realidade na antessala. As crianças escrevem no pó químico obscenidades sobre governos estrangeiros. Os jóqueis aposentados rolam nas cinzas dos pilares. Não se dizem disparates como os ditos na antessala. Na rotunda, só pensamentos coagulados. Não há arrependimentos, não há movimento fora o levantar e abaixar de copos, o inclinar e desinclinar de garrafas, o inclinar e desinclinar de cabeças, o assentir e o recolher-se para a antessala.
           
           Ouso me retirar. A rua é o pálido calabouço das mentes inseguras, presas numa projeção inverossímil de sucessos contínuos seja qual for o negócio. As pombas se revezam por atenção nos umbrais mal conservados dos prédios de outros séculos; séculos de glórias esquecidas ou cristalizadas em feriados castradores de novos eventos. Há tanta glória no passado das ruas que não sobra um dia para que uma nova glória aflore. A promoção, o beijo, o assalto bem sucedido. Eventos todos dignos de feriado. Não para os sabichões que compõem as mesas da antessala. Os coquetéis são gloriosos, os garçons competentes, a sola do sapato do rei sol é saborosa e macia. “Vejam, ele pisou na minha cara!”, “Oh! Mas que honraria”.
            Prefiro o vento gelado da rua agredindo meus conceitos sobre o inverno e o verão. É difícil correr entre tantas portas e escolher uma que seduza a cruzá-la. É preciso um motivo. Um motivo feliz ou enfadonho que venha a se transformar no futuro num ato da pior vilania que olvide as glórias do passado e se presencie o advento de um novo feriado. Não digo as padarias e os mercados, os açougues e despachantes. As outras portas que se abrem por segundos, por uma miríade de motivos, as que se fecham pela última vez padecendo ao ostracismo programado, à benéfica bolha exponencial de progresso irresponsável. Mortas as lembranças de mais um imóvel inocente. Só restam as folhas do cinamomo para contar a saga de um velho edifício que, mais que os melhores patriarcas, manteve unido o caos e o desespero.
            Sob o céu preto e salpicado de açúcar cristal, na madrugada gelada que não pergunta se eu aceito um café, o tempo para apesar do relógio de corda do corredor de carpet. E é possível ouvir o eco dos sonhos de anteontem perfurando as camadas superficiais da força de vontade e penetrando numa época que não os pertence.
            Segue o cortejo do novo deus pela avenida iluminada por mercúrio aquecido. Os sábados são irresponsáveis, os motoristas dormem sobre as buzinas. Estão todos entediados. “Não queremos novidades”, “É, pintem o antigo de uma cor diferente e nos o devolva.” As invenções natimortas chovem pelas janelas em murmúrios de frustração magnífica e genial. Ainda não é tempo de precisarmos disso. Ainda não queremos precisar disso. Ainda podemos achar novidades nas gloriosas caixas de geladeira-naves espaciais. Ideias coagulam e esperam o momento de jorrar obsolênscias nas residências e balcões. O amanhã já foi inventado. Não há novidade nas ruas. Não há novas glórias e, portanto, novos feriados. Um viva aos patriarcas mortos! Um viva aos velhos ditadores e novos heróis!